manuel da costa pinto
Roma sob a cruz negra
A série "Os Bórgias" tem relação bem menos evidente com a renúncia de Bento 16 que os filmes evocados nas últimas semanas por comentaristas políticos e críticos de cinema.
A mais impressionante confluência entre ficção e realidade é "Habemus Papam" (2011), em que o cardeal eleito tem uma crise de pânico e não assume o pontificado, deixando um vácuo de poder retratado por Nanni Moretti de forma cômica, porém decorosa.
Duplamente profético, "As Sandálias do Pescador" (1968) funde a personagem de um cardeal vindo do leste europeu, como o polonês Karol Wojtyla (João Paulo 2º), com um papa que, durante a noite, desce incógnito às ruas de Roma, prefigurando as aflições de Ratzinger (Bento 16).
Se, em ambos os filmes, o pontífice aparece em conflito íntimo com a grandeza política e as vaidades mundanas de sua tarefa, a série televisiva "Os Bórgias" oferece perspectiva nada edificante do papado.
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O ator Jeremy Irons (centro) no papel do papa Alexandre 6º em cena da primeira temporada |
Afinal, o espanhol Rodrigo Bórgia, ou Alexandre 6º, entrou para a história como símbolo da corrupção da Igreja. Teve várias amantes e ao menos nove filhos --dentre eles, Lucrécia (célebre por suas maquinações de alcova) e César Bórgia (que inspirou "O Príncipe", tratado de Maquiavel sobre a arte de governar dosando força e astúcia).
A produção do irlandês Neil Jordan, cuja primeira temporada estreou em 2011 e está nas locadoras, é impecável do ponto de vista cenográfico, com belíssima reconstituição da Roma renascentista e um grande ator, Jeremy Irons, no papel de Alexandre 6º.
Não faltam envenenamentos, conspirações e personagens como Savonarola -pregador que, chocado com a devassidão papal, diz ter visto "uma cruz negra sobre a Babilônia que é Roma". Tampouco faltam infidelidades históricas (o torpe assassinato de um príncipe turco acolhido pela Igreja com intenções geopolíticas, mas que na verdade morreu de causas naturais) e filológicas (o uso do termo "sprezzatura", que define a conduta do cortesão, mas corresponde a codificação social posterior).
Em compensação, Jordan evita exagerar os aspectos luxuriosos do papado de Alexandre 6º. Mostra um pontífice que até certo ponto renuncia à vida privada em nome do poder -na contramão de Bento 16, que retornou à vida espiritual para denunciar os excessos do Vaticano.