manuel da costa pinto

24/02/2013 17:26

 

 

Roma sob a cruz negra

 

 

A série "Os Bórgias" tem relação bem menos evidente com a renúncia de Bento 16 que os filmes evocados nas últimas semanas por comentaristas políticos e críticos de cinema.

A mais impressionante confluência entre ficção e realidade é "Habemus Papam" (2011), em que o cardeal eleito tem uma crise de pânico e não assume o pontificado, deixando um vácuo de poder retratado por Nanni Moretti de forma cômica, porém decorosa.

Duplamente profético, "As Sandálias do Pescador" (1968) funde a personagem de um cardeal vindo do leste europeu, como o polonês Karol Wojtyla (João Paulo 2º), com um papa que, durante a noite, desce incógnito às ruas de Roma, prefigurando as aflições de Ratzinger (Bento 16).

Se, em ambos os filmes, o pontífice aparece em conflito íntimo com a grandeza política e as vaidades mundanas de sua tarefa, a série televisiva "Os Bórgias" oferece perspectiva nada edificante do papado.

  Divulgação  
O ator Jeremy Irons (centro) no papel do papa Alexandre 6º em cena da primeira temporada
O ator Jeremy Irons (centro) no papel do papa Alexandre 6º em cena da primeira temporada

Afinal, o espanhol Rodrigo Bórgia, ou Alexandre 6º, entrou para a história como símbolo da corrupção da Igreja. Teve várias amantes e ao menos nove filhos --dentre eles, Lucrécia (célebre por suas maquinações de alcova) e César Bórgia (que inspirou "O Príncipe", tratado de Maquiavel sobre a arte de governar dosando força e astúcia).

A produção do irlandês Neil Jordan, cuja primeira temporada estreou em 2011 e está nas locadoras, é impecável do ponto de vista cenográfico, com belíssima reconstituição da Roma renascentista e um grande ator, Jeremy Irons, no papel de Alexandre 6º.

Não faltam envenenamentos, conspirações e personagens como Savonarola -pregador que, chocado com a devassidão papal, diz ter visto "uma cruz negra sobre a Babilônia que é Roma". Tampouco faltam infidelidades históricas (o torpe assassinato de um príncipe turco acolhido pela Igreja com intenções geopolíticas, mas que na verdade morreu de causas naturais) e filológicas (o uso do termo "sprezzatura", que define a conduta do cortesão, mas corresponde a codificação social posterior).

Em compensação, Jordan evita exagerar os aspectos luxuriosos do papado de Alexandre 6º. Mostra um pontífice que até certo ponto renuncia à vida privada em nome do poder -na contramão de Bento 16, que retornou à vida espiritual para denunciar os excessos do Vaticano.